quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A Rosa Azul

A maior obsessão da vida de Novalis foi a Rosa Azul, símbolo da beleza inefável. Durante toda sua vida a buscou, convencido de que a poesia e o amor eram os únicos caminhos para encontrá-la.

A Rosa Azul, aquarela.
«Toda a descida em nós
mesmos é simultaneamente
uma ascensão,uma assunção,
e uma vista do verdadeiro exterior.»


sábado, 25 de junho de 2016

Nova Águia - Revista de Cultura para o Século XXI

A Águia foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal, em que colaboraram algumas das mais relevantes figuras culturais como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Raul Proença, Leonardo Coimbra, António Sérgio, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. A NOVA ÁGUIA pretende ser uma homenagem a essa tão importante revista da nossa História, procurando recriar o seu “espírito”, adaptado ao século XXI. 

No decorrer dos últimos meses realizei ilustrações para a Nova Águia, tendo a honra de chegar ao cargo de vice-diretora da revista. Deixo aqui expresso o meu orgulho e meus votos de agradecimento ao Renato Epifânio, por me dar a oportunidade, e a Nova Casa Portuguesa, quem sempre me apoiou mais fortemente na arte.

O Ruba'iyat de Omar Khayyām

Rubaiyat, Ruba'iyat, ou ainda O Êxtase do Vinho, é uma seleção de poemas, originalmente escritos em persa, por Ghiyath al-Din Abu'l-Fath Umar ibn Ibrahim Al-Nishapuri al-Khayyami (em persa: غیاث الدین ابو الفتح عمر بن ابراهیم خیام نیشاپوری), um importante matemático e astrônomo que viveu entre os séculos XI e XII e ficou mais conhecido no ocidente como Omar Khayyām, por seus poemas.


«Não te inquietes, a vida é como um suspiro.
As cinzas de Djenchid e de Kai-Kobad volteiam
na poeira vermelha que tolda o ar.
O Universo é uma miragem, a vida é um sonho.»

Capa do Ruba'iyat em ouro adornada de pedras preciosas, uma verdadeira joia que afundou com o Titanic.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Que permaneça Imaculada: a Vida e a Arte

Anne Hollander escreveu sobre a circunstância de o nu ser, na nossa tradição, mais despido do que desnudado: um corpo marcado pelas formas e materiais daquilo que habitualmente o cobre. Em Ticiano o corpo descansa, tal como faria se estivesse protegido do olhar por um véu. É um corpo vestido por roupas invisíveis. Assim como somos incapazes de separar o corpo de uma mulher completamente vestida do seu rosto e personalidade, também somos incapazes de fazê-lo no caso de um nu de Ticiano. Ao pintar o corpo do modo descrito, Ticiano supera a qualidade escondida do corpo, a sua natureza de fruto proibido. Este efeito desapareceria se o rosto fosse substituído por um esterótipo produzido em série, ao estilo de Boucher. Nele, o rosto é algo que aponta para o corpo, é a sua razão de ser. Em Ticiano não temos bem o contrário disto, pois a emoção presente na pintura reside certamente na coloração em tons de carne, na luz, na suavidade e na promessa de uma forma feminina completa. Só que em Ticiano o rosto mantém a sua vigilância sobre esta forma, afirmando o seu direito de propriedade sobre ela, removendo-a do nosso alcance. Trata-se de arte erótica, mas não é, de todo, arte concupiscente. A vénus não está a ser-nos mostrada como um possível objecto do nosso desejo. Ela está a ser-nos negada, a ser integrada na personalidade que calmamente olha por aqueles olhos e que se ocupa de pensamentos e desejos próprios.

Quando Manet pintou a famosa boulevardienne da Paris do século XIX na pose da Vénus de Ticiano, a sua intenção não era apresentar o corpo desta como um objecto sexual, mas revelar um tipo de subjectividade mais forte. 

Manet, Olympia: o corpo desinibido.
A mão na coxa da Olympia de Manet não é a mão que Ticiano pinta, educada nas carícias inocentes e que repousa com um toque delicado. É uma mão rude e experimentada, que lida com o dinheiro, à qual é mais fácil agarrar do que acariciar; uma mão que é usada para afastar impostores, inadaptados e depravados. A expressão sabida não oferece nem esconde o corpo, mas lá tem a sua maneira de dizer que aquele corpo está completamente ao meu dispor. Olympia dirige-se ao observador com um olhar avaliador, perspicaz; um olhar autêntico, que é tudo menos erótico. O grande bouquet de flores oferecido pelo criado deferente mostra quão fútil é abordar esta mulher com gestos românticos. A pintura capta um intenso momento de individualização, um momento que tem relação, embora ironicamente, com o momento de individualização da Vénus de Ticiano. Estamos na presença desta mulher usando as lentes da sua própria consciência. A relação entre identidade própria e consciência de si torna-se vívida na rigidez do seu reclinar. Ela não repousa na cama, antes parece pronta para dela pular. É uma bela pintura, embora a sua beleza não seja a daquela mulher que sobre os lençóis balança os seus chinelos.

Eros e desejo

A questão levantada por Platão no Banquete e no Fedro mantém-se tão pertinente hoje como o era na antiga Grécia: que lugar há, no desejo sexual, para o objectivo individual? Visto como simples impulso, o desejo pode ser satisfeito por qualquer membro do sexo relevante. Nesse caso o indivíduo não pode ser o verdadeiro objecto do desejo, uma vez que ele ou ela é apenas uma instância do homem ou da mulher universais. Visto como força espiritual, no entanto, o desejo é igualmente indiferente ao indivíduo. Se ele é visado, é-o devido à sua beleza, e a beleza é um universal, que nem pode ser consumido nem possuído, apenas contemplado. Em qualquer dos casos, o indivíduo é irrelevante e é excluído - o desejo físico não o alcança e o amor erótico transcende-o. Quer na visão de Platão quer na dos medievais, o indivíduo encarnado não existe como objecto do amor - um sorriso sem carne posto em éter, como o de Beatriz no Paraíso.

Gradualmente, após a Renascença, a perspectiva de Platão da condição humana perdeu o encanto e os sentimentos eróticos começaram a ser representados na arte, música e poesia pelo que são. Em Vénus e Adónis de Shakespeare a deusa do amor veio definitivamente do céu para a terra, tornando-se não apenas num símbolo da paixão física, como também uma vítima dela. Milton retoma a história no seu retrato de Adão e Eva, uma representação dos «ritos misteriosos do amor conubial», na qual o corpo tem enorme importância, não como instrumento mas enquanto presença física da alma racional. O corpo deixa o sorriso em éter; ao invés, o sorriso realiza-se no corpo, embora, como disse Milton, «os sorrisos da razão fluem, e são o alimento do amor». Assim, Adão e Eva são seres totalmente carnais, estando «no Paraíso, nos braços um do outro».

O objectivo de Milton não é dividir a deusa do amor como o fez Platão, mas mostrar o desejo sexual e o amor erótico como inseparavelmente ligados, completando-se e legitimando-se um ao outro. Dryden, em Inglaterra, e Racine, em França, também retrataram o amor erótico como ele é, a saber: um predicamento de indivíduos incorporados, para quem a vontade, o desejo e a liberdade são feitos de carne. Estes escritores entenderam o amor erótico como uma espécie de cruz que a condição humana tem de carregar, um mistério ao qual o nosso destino terreno está ligado e do qual não podemos escapar sem o sacrifício de uma parte de nossa natureza e felicidade. No entanto, a primeira Renascença florentina reteve a concepção platónica e medieval do erótico. A este respeito, a distância que medeia entre Dante e Milton tem paralelo na que vai de Botticelli a Ticiano. Enquanto a mente platónica da Idade Média e da primeira Renascença conceberam o objecto do desejo como uma premonição do etéreo, a mente moderna vê o objecto do desejo simultaneamente como racional e mortal, com todo o desamparo, dor e tristeza que daí advém.

Arte e Pornografia

A ascensão da alma pela mão do amor, que Platão descreve no Fedro, é simbolizada pela Afrodite Urânia, a Vénus pintada por Botticelli, que por acaso, foi um ardente platónico e membro do círculo platónico que girava em torno de Pico della Mirandola. A Vénus de Botticelli não é erótica; é uma visão da beleza celestial, uma visitação vinda de esferas de outra natureza, mais elevada, e um convite à transcendência. Ela é decerto precursora, e ao mesmo tempo descendente, das virgens de Fra Fillippo Lippi: precursora, no seu significado pré-cristão; descendente, ao absorver tudo o que foi alcançado na representação da Virgem Maria como símbolo da carne imaculada.

A reabilitação pós-renascentista do desejo sexual lançou os alicerces de uma arte erótica genuína, que viria a exibir o ser humano como sujeito e também como objecto do desejo, sem que aquele deixasse de ser um indivíduo livre, cujo desejo é um favor concedido conscientemente. Contudo, essa reabilitação do sexo leva-nos a levantar uma questão que se tornou uma das mais importantes para a arte e para a crítica da arte no nosso tempo: saber qual a diferença, se alguma há, entre a arte erótica e a pornografia. A arte pode ser erótica e também bela e simultaneamente pornográfica - assim cremos, pelo menos. É importante perceber porquê.

Ao distinguir o erótico e o pornográfico, estamos realmente a distinguir dois tipos de interesse: o interesse na pessoa incorporada e o interesse no corpo - e, no sentido que eu tenho em mente, dois interesses incompatíveis. O desejo normal é uma emoção interpessoal. O seu propósito é uma entrega livre e mútua, que é também a união de dois indivíduos, este e aquele, através dos seus corpos, decerto, mas não meramente enquanto corpos. O desejo normal é uma reação pessoa a pessoa, que procura a identidade que oferece. Os objectos podem ser substituídos uns pelos outros, os sujeitos não. Os sujeitos, como Kant persuasivamente defendeu, são indivíduos livres, a sua não substituibilidade liga-se ao que eles essencialmente são. A pornografia, como a escravidão, é a negação do sujeito humano, uma forma de ignorar o mandamento moral que afirma que os seres livres têm de tratar-se entre si como fins em si mesmos.

Pornografia soft

A ideia pode ser exposta à luz de uma distinção. A pornografia dirige-se a um interesse da fantasia, ao passo que a arte erótica vai ao encontro de um interesse da imaginação. Assim, a primeira é explícita e despersonalizada, enquanto a segunda convida-nos para a subjectividade de outra pessoa, apoiando-se na sugestão e na alusão, em vez de na exibição explícita.

O propósito da pornografia é incitar o desejo vicariante; o da arte erótica é retratar o desejo sexual das pessoas nela representadas - se ela, além disso, também incita aquele que a vê, como acontece por vezes com Correggio, isso é um defeito estético, uma «queda» noutro tipo de interesse que não aquele que aponta à beleza. A arte erótica põe, assim, um véu sobre o seu objecto, por forma a que o desejo não possa ser traduzido e expropriado pelo observador. A suprema realização da arte erótica é fazer com que o corpo ponha ele próprio um véu sobre si - dando a própria carne uma expressão de decência que interdita o voyeur, fazendo assim com que a subjectividade do nu se revele, mesmo naquelas partes que estão fora da esfera da vontade. É isto que Ticiano alcança, e o resultado é uma arte erótica ao mesmo tempo serena e nupcial, que põe o corpo totalmente fora do alcance do interesse sórdido dos «mirones».

Olhemos agora para A Menina O'Murphy de Boucher e veremos quão diferente é a intenção artística. 

Boucher, A Menina O'Murphy (L'Odalisque Blonde): o corpo impudente.
Esta mulher adoptou uma pose que não poderia assumir se vestida. Trata-se de uma pose que não tem lugar na vida quotidiana, tirando no acto sexual. Esta postura atrai a atenção para si mesma, uma vez que a mulher olha calmamente para o outro lado, não parecendo estar preocupada com algo em especial. A pintura de Boucher vai contra as normas da decência ainda de outro modo, visto que não encontramos, no quadro, qualquer razão que justifique a pose da Odalisca. Ela está sozinha, não olhando para algo em particular, não ocupada com outro acto que não aquele que está à vista. O lugar do amante está ausente à espera de ser preenchido, sendo o espectador convidado a ocupá-lo.

Há obviamente diferença entre a Odalisca e os peitos e traseiros na página 3 do The Sun. Uma delas é a diferença geral entre pintura e fotografia - a primeira, uma representação de ficções; a segunda, uma apresentação de realidades (mesmo se ajustadas pelas artes gráficas ou pelo photosoftware). O mínimo que se pode dizer é que o traseiro na página 3 do The Sun é tão real como parece e seu interesse reside nisso mesmo. A segunda diferença está ligada à primeira, ou seja, não temos de saber o que quer que seja acerca da Odalisca de Bocher, tirando o que a pintura nos diz, para apreciar o efeito pretendido. Houve um modelo que posou para esta tela. No entanto, nós não interpretamos a tela como o seu retrato, nem como uma pintura em que a pessoa do modelo seja o tema. Os traseiros na página 3 do The Sun têm um nome e uma morada. Muito frequentemente, o texto que os complementa diz-nos muito acerca da própria rapariga, encorajando-nos a avançarmos com a fantasia do contacto sexual. Para muita gente, penso que com razão, isto indicia uma diferença moral decisiva entre a página 3 do The Sun e uma pintura como a de Boucher. A mulher da página 3 é empacotada com base nos seus atributos sexuais, tomando lugar nas fantasias de milhares de estranhos. Ela pode não importar-se com isso, presumivelmente isso não acontece. Mas, pelo facto de não se importar, ela mostra quanto já perdeu. Ninguém é degradado pela pintura de Boucher, uma vez que nenhuma pessoal real é representada por ela. Esta mulher - mesmo se o modelo tem um nome e uma morada (ela era Louise O'Murphy, acomodada no Parc aux Cerfs para prazer do rei) - é representada como uma ficção, de nenhum modo idêntica a um ser humano real, não obstante ser pintada a partir da vida.

A questão moral

Não é fácil movimentar-nos no pântano moral da pornografia soft. Numa época como a nossa, em que as imagens mais cruas estão ao alcance de um toque de teclado, em que o Supremo Tribunal dos EUA protege a pornografia hardcore por considerá-la «liberdade de expressão», e quando a sexualidade humana é discutida como se a modéstia, a decência e o pudor nada mais fossem do que ilusões opressivas, é difícil condenar a página 3 do The Sun. Que mal pode fazer? Esta é a resposta natural, e, quando atacada por feministas de pendor censório, até nos é simpática. Mas não devemos enganar-nos a nós mesmos, como acontece com certos comentadores, pensando que o interesse pela página 3 do The Sun é um interesse pela beleza, por um ideal de feminilidade ou por um valor mais elevado que se revela no texto. Pelo contrário, a característica mais importante das raparigas pela página 3 do The Sun é que elas são reais, sendo exibidas como objecto sexual. Mesmo se temos para com elas uma atitude tolerante, e mesmo se têm o papel de compensar aquilo que falta numa vida privada de satisfação sexual, não devemos pensar que elas competem no domínio do interesse estético (nem mesmo do interesse motivado pel' A Menina O'Murphy de Boucher). A tela de Boucher encontra-se na linha divisória entre o estético e o sexual, autorizando os nossos pensamentos a vaguear por território proibido, embora não os alimente com o conhecimento de que esta mulher é real e que está disponível e à mão - o conhecimento que causa o salto da imaginação para a fantasia e da apreciação estética da beleza feminina para o desejo de abraçar uma instância desta.

A discussão sobre a Vénus de Ticiano indicia, penso eu, porque está a pornografia fora do reino da arte, já que ela é incapaz da beleza em si e porque implica a dessacralização da beleza das pessoas que a fazem. A imagem pornográfica é como uma varinha mágica que transforma sujeitos em objectos e pessoas em coisas, tirando-lhes, assim, o encanto e destruindo a fonte da sua beleza. Ela faz com que as pessoas se escondam atrás dos seus corpos, como marionetas operadas por cordas invisíveis. Desde o cogito de Descartes, que a imagem do eu como um homúnculo interior fez cair uma sombra sobre a nossa concepção da pessoa humana. A imagem cartesiana leva-nos a crer que vivemos a vida puxando um animal pela coleira, forçando-o a seguir as nossas ordens até que ele, por fim, entra em colapso e morre. Eu sou um sujeito; o meu corpo, um objecto. Eu sou eu; ele é ele. Neste sentido, o corpo torna-se uma coisa entre as outras coisas e o único modo de resgatá-lo é afirmar um direito de propriedade; dizer: este corpo não é somente um velho objecto, mas um corpo que me pertence. É assim, que a pornografia vê a relação entre a alma e o corpo.

Há, no entanto, uma outra, e melhor, maneira de ver as coisas. Ela explica muita daquela velha moralidade que hoje em dia muitas pessoas dizem não compreenderem. Segundo esta perspectiva, o meu corpo não é propriedade minha, mas - usando o termo teológico - a minha encarnação. O meu corpo não é um objecto, mas um sujeito, tal como eu o sou. Não sou mais dele dono do que de mim mesmo. Estou misturado com ele inextrincavelmente. Fazer qualquer coisa ao meu corpo é o mesmo que fazê-lo a mim. Por outro lado, se o meu corpo é sujeito a um certo tratamento, a minha maneira de pensar e de sentir pode alterar-se. Posso perder o meu senso moral, tornar-me menos sensível e indiferente aos outros, deixar de fazer juízos ou de ser guiado por princípios e ideais. Quando isto acontece não sou apenas eu o prejudicado. Todos os que me amam, que precisam de mim ou que comigo estão relacionados também sofrem com isso, pois causei dano àquela parte sobre a qual as relações são construídas.

A velha moralidade, que nos diz que vender o corpo é incompatível com a oferta do eu, toca numa verdade. O sentir sexual não é uma sensação que se pode ligar ou desligar conforme se quer. É um tributo de um eu a outro e - no seu auge - uma revelação incandescente do nosso ser. Tratá-lo como uma comodidade, que pode ser comprada e vendida como qualquer outra, é causar dano ao eu de hoje e aos de amanhã. Condenar a prostituição é mais do que fanatismo puritano, é o reconhecimento de uma verdade profunda: que nós e o nosso corpo não somos duas coisas, mas uma só; que ao vendermos o corpo endurecemos a alma. O que é verdadeiro sobre a prostituição é-o também acerca da pornografia.  Esta não é um tributo à beleza humana, mas a sua dessacralização.

Beleza e eros

Neste capítulo concentrei-me na pintura, de forma a sublinhar a fronteira entre arte erótica e fantasia sexual. A minha intenção era visitar pela última vez a velha perspectiva platónica de que eros é governado pelo princípio da beleza em todas as suas formas, e mostrar, com mais pormenor como isto falseia quer a natureza do interesse estético quer o género de educação moral que a verdadeira arte consegue alcançar. A beleza resulta de colocar a vida humana, sexo incluído, a uma distância tal que se torne possível vê-la sem desgosto ou prurido. Quando se perde esta distanciação e a imaginação é engolida pela fantasia, a beleza pode até permanecer - mas será uma beleza degradada, uma beleza forçada a libertar-se da individualidade da pessoa que a possui. Perde o seu valor e ganha um preço.

Além disso, a beleza humana pertence ao nosso estar num corpo. A arte que «objectiva» o corpo,  removendo-o do domínio das relações morais, nunca será capaz de captar a verdadeira beleza das formas humanas. A comparação entre a pornografia e a arte erótica mostra-nos que o gosto está enraizado no quadro mais alargado das nossas preferências, que expressam e encorajam certos aspectos de nosso carácter moral. A luta contra a pornografia é contra o interesse que ela serve, de ver as pessoas reduzidas aos seus corpos, objectivadas como animais, transformadas em coisas e tornadas obscenas. Trata-se de algo que muitos comungam, mas é um interesse em conflito com a nossa humanidade. Ao mostrar-me desfavorável a este interesse, ponho-me de fora da esfera do juízo estético e passo para o problema da virtude e da depravação sexual. A pornografia oferece, portanto, uma vívida ilustração da tese: o padrão de gosto é fixado pelas virtudes do crítico e essas são testadas e provadas na vida moral.

- SCRUTON, Roger. BELEZA. Capítulo: a arte erótica. In Portugal. Editora: Guerra e Paz, 2009.